OUTROS 40 [2014] | Organizado por João Bandeira | Iluminuras
Uma vez, há muito tempo, encontrei Arnaldo Antunes na Consolação com a Paulista, aqui em São Paulo. Já nos conhecíamos, mas não éramos propriamente amigos. Apesar de um pouco atrapalhado com a mobilete que pilotava com certa dificuldade, me ofereceu carona.
E fomos despretensiosamente conversando em meio ao vento, até que ele me deixou nas redondezas do meu destino. As palavras que trocamos, enquanto mantínhamos a atenção simultaneamente no ritmo alternado do equilíbrio-desequilíbrio, permaneceram comigo. Pensei nelas ainda muito depois daquele dia.
Numa outra vez, era eu quem vinha de moto pela Teodoro e dei de cara com ele, subindo a rua a pé. Levei-o até o lugar em que ele estava morando por uns tempos, em Perdizes. Usar capacete já era então obrigatório e não falamos muito pelo caminho.
Quando chegamos, eu não quis entrar; alguém me esperava. Atualizamos a conversa, que foi se esticando, ali mesmo na calçada: o que estávamos fazendo ou planejávamos fazer e, principalmente, quem e o quê naquele momento estava piscando mais à nossa atenção. Lembro que, dias mais tarde, disse à minha namorada que, sem nem de longe se propor a isso, Arnaldo havia, novamente, melhorado a antena do meu receptor.
Semelhante à primeira vez, aquele nosso papo casual teve seu efeito estendido diante de mim. Como se indicasse uma pista na floresta de signos que me ajudasse a encontrar o rumo de onde eu desejava e, na época, precisava mesmo ir.
Bem, à essa altura todo mundo já sabe que Arnaldo sabe como nos levar — embarcados nos sons sentidos figuras das palavras — na direção de algum lugar em que, chegando inesperadamente, estar é bastante. E às vezes necessário, para não sermos apenas um cada um no meio de todos. Faz parte disso a sua conhecida habilidade de se deslocar por áreas de produção muito diversas e encontrar nelas pontos de contato, quando não amplas e insuspeitadas afinidades. E ainda quando não é esse o caso, diante do ponto final da diferença, apostar no convívio (embora não costume fazer por menos para obtusos de todos os clubes). Em contato com o mundo a partir da cidade que ele chama de gigante liquidificador, onde os lugares saem do lugar, em que, como em nenhuma outra do Brasil, justamente convivem e/ou se misturam com alta potência macro e microculturas, investimentos de massa e de vanguarda, aquela habilidade de Arnaldo encorpou seu modo particular de metalinguagem.
Um bom pedaço disso tudo está à mostra no primeiro livro a reunir os seus textos esparsos — que, a pedido dele, organizei — chamado 40 Escritos (publicado em 2000).
A ideia para o título me veio do fato de que nossa escolha tinha chegado a esse número de textos, em coincidência com a idade que ele estava completando na época. Era como se, até que aparecesse, cada um daqueles escritos tivesse sido gestado durante toda a vida pregressa do autor. E registrando a visão de Arnaldo sobre questões diversas, em sua maioria a partir do trabalho de outros artistas, além do dele mesmo, era também como se, na outra ponta do tempo, o conjunto esboçasse um mapa do seu pensamento. Agora são Outros 40. Uma década passou. Fora três exceções, os textos são posteriores aos do primeiro 40 e tendem a se concentrar um pouco mais em música e poesia ou literatura. Mas mantendo o horizonte largo, de olho em muita gente: Erasmo Carlos, Pojucan, Zé Agrippino, Paulo Fridman, Ferrez, Augusto de Campos, Jussara Silveira, Cézar Mendes, Eduardo Muylaert, Waly Salomão, Planet Hemp, Sérgio Guerra, Lourenço Mutarelli, ela, ele, você — entre vários outros. E, desse modo, é como se o esboço daquele mapa, para sempre incompleto, crescesse, reiterando alguns traços, clareando áreas, detalhando partes.
Como se. Outra vez. Teorias velhas e novas afirmam que a linguagem verbal é metafórica por definição. Irremediavelmente diversa daquilo que nomeia, a palavra é sempre um ‘como se’. Nunca para de operar transferências, estabelecendo analogias entre coisas e coisas e ideias. Para falar disso recorre àquilo — e vice-versa. E tradicionalmente o poeta é aquele que possui talento e treino para melhor configurar em palavras as qualidades do que estava ausente, escondido ou ainda mal expresso, dando-lhe analogicamente uma presença. Não necessariamente no texto do poema.
Eventualmente em outros lugares. No faroeste de John Ford (‘quando a lenda supera a realidade, publique-se a lenda’), em Xanadu, em Jaçanã, na Alphaville de Godard (‘acontece de a realidade ser muito complexa para a transmissão oral; a lenda a retransmite sob uma forma que lhe possibilita correr mundo’) ou na Alphaville-São Paulo — em qualquer meio em qualquer parte o tempo todo aqui agora. Um deles, Octavio Paz, escreveu que os poetas dos tempos modernos têm de lidar também com o princípio da ironia, o par necessário e oposto da analogia, a descontinuidade da prosa invadindo a cadência da poesia, a consciência da linguagem sobre suas próprias limitações, a perspectiva crítica que, afastando, igualmente revela. A aresta viva no recorte.
O que me faz lembrar do começo. De um trabalho que Arnaldo publicou no Kataloki, em 81: uma montagem feita com a foto de Pelé ajeitando a bola para o chute que seria o do seu milésimo gol. No lugar da bola, a cabeça de Ezra Pound, mais o fragmento de uma frase deste sobre uma das propriedades principais da literatura e/ou da poesia: ‘nutrir de impulsos’. Neste Outros 40, é mais uma vez a partir dessa divisa e particularmente do seu dom de equilíbrio-desequilíbrio entre o espantosamente óbvio e o evidentemente estranho que Arnaldo impulsiona o pensamento.
JOÃO BANDEIRA
Páginas: 176
Formato: 15 x 21cm
Acabamento: Brochura
ISBN: 978-85-7321-438-3
Selo: Iluminuras